Edição: 288

Diretor: Mário Lopes

Data: 2024/11/21

Almirante foi o convidado das conferências sobre o 25 de abril em Porto de Mós

Gouveia e Melo: “Não esperem que apareça um salvador. E se aparecer, é muito mau, é o pastor”

Patrícia Alves, Henrique Gouveia e Melo e Kevin Carreira Soares

A terceira sessão no Ciclo de Conferências “Ditadura e Democracia: Que História? Que Presente? Que Futuro?”, integrado no programa das Comemorações dos 50 Anos do 25 de Abril 2022-2024, teve lugar no dia 10 de abril, no auditório da Central das Artes, em Porto de Mós, e teve como orador Henrique Gouveia e Melo, Chefe do Estado-Maior da Armada. O Almirante abordou a temática “O mundo dividido entre autocracias e democracias”, mas também respondeu a perguntas do público e surpreendeu nas respostas.

Gouveia e Melo foi claro na divisão do mundo em autocracias e democracias, mas mostrou-se contra um mundo dividido em dois, justificando a sua posição com o elevado preço a pagar pelo fim da globalização, ao reduzir o potencial económico da generalidade dos países do mundo, incluindo Portugal.

A primeira pergunta foi sobre a participação da Armada no 25 de abril e no 25 de novembro, tendo o almirante admitido que a Marinha esteve conotada com a Esquerda no período revolucionário, mas considerou que esteve do lado certo da história nos dois momentos críticos da Revolução Gouveia e Melo recordou que a instauração da democracia foi um processo com ziguezagues, mas a resultante foi instaurar em Portugal “um regime democrático a que todos nós estamos agradecidos.”

Para o ex-comandante da Task Force para o Plano de vacinação contra a COVID-19 em Portugal, “a democracia não é um conjunto de pessoas que tomam conta de nós e que não temos de participar no processo. O processo tem de ser participativo e todos os cidadãos têm de participar nas suas diversas dimensões.”

Oura pergunta partiu de José Contreiras, um oficial da Marinha aposentado residente em Porto de Mós, que recordou as origens moçambicanas do Almirante e que Porto de Mós está ligado a Moçambique pela primeira e última assinatura do Portugal colonial neste território africano. O Almirante Vítor Crespo deixou a última assinatura como último Governador do território, já no pós-25 de abril de 1974, e Sancho de Tovar, genro do alcaide-mor de Porto de Mós, marinheiro que viajou com Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral, esteve cinco anos em Moçambique e foi seu primeiro governador.

A segunda pergunta foi como defender plataforma continental, com que meios e com que gente. Para o Chefe do Estado-Maior da Armada, “Portugal tem um dilema. Tem ambição, mas tem poucos recursos. Até aos Descobrimentos, o poder era definido como a conquista e subjugação de outros povos, a partir daí, o poder passou a ser o controlo das rotas marítimas. Ainda hoje o poder é o controlo dos grandes espaços comuns da humanidade.”

Por isso, “hoje estamos perante um dilema. Somos um povo com recursos limitados, o direito internacional dá-nos uma área gigantesca de espaço marítimo sob soberania e jurisdição e essa área está numa zona crucial para o tráfego marítimo ocidental, para as trocas comerciais ocidentais e para as trocas de dados, já que na nossa região passa a maior parte das infraestruturas de fibra ótica do mundo ocidental.”

“Portanto, estamos numa posição geográfica muito interessante do ponto de vista geopolítico e geoestratégico, mas também muito cobiçada. Não tenho resposta clara para tudo, mas temos de ser inteligentes na aplicação de todos os recursos, fazer um plano minimamente estruturado, conseguir estabelecer as alianças necessárias, senão esta oportunidade passa a ser uma ameaça e enfrentaremos, no futuro, problemas muito maus graves do que enfrentamos hoje”, explicou.

Por outro lado, questionou, “será que somos tão fracos ou temos tão pouca capacidade que teremos de entregar este espaço a terceiros sem obter praticamente benefícios dele? É isso que tem de nos fazer pensar e temos de fazer todos uma “nova cruzada” no sentido de encontrar um palco.”

Segundo o Almirante, “a Marinha tem, desde há muitos anos, tentado fazer a discussão do tema da plataforma continental. Eu, desde que sou CEMA, tenho tentado fazer outra coisa. Desenvolver o interesse das empresas e do tecido empresarial por tecnologias e com negócios que têm a ver com o mar. Essas tecnologias não têm a ver com navios de pesca nem de transporte. São tecnologias disruptivas que usam o mar com grande efeito económico.”

O Chefe do Estado-Maior da Armada defendeu que “há uma economia que depois precisa de tecnologia, a economia azul. O próprio desenvolvimento desta tecnologia é uma economia em si. E isso temos capacidade neste momento para começar a fazer e estar na ponta desse desenvolvimento. Nós criámos a primeira zona livre tecnológica no mar, temos um centro de experimentação operacional em que alavancamos empresas para a área do mar.”

Gouveia e Melo surpreendeu a audiência com uma nova revelação, começando por referir que, “se há 40 anos, em Quelimane, que nem televisão tinha, dissessem que hoje tinha um telemóvel que faz de televisão, redes sociais e telefone diria que era impossível. Por isso, peço para se libertarem agora da âncora que vos prende à Terra.”

O Almirante recordou que “o ser humano desenvolveu-se muito pouco até ao Neolítico. Quando passou do Paleolítico para o Neolítico, as sociedades que eram nómadas, sedentarizaram-se e criaram sociedades mais complexas. O ser humano que é geneticamente igual há pelo menos 600 mil anos desenvolveu uma cultura e tecnologia exponencial nos últimos 30 mil anos porque se sedentarizou. No mar, somos nómadas. Hoje há apenas umas pequenas aldeias a crescer nas plataformas no mar, mas é o primeiro processo de sedentarização do mar.”

E prosseguiu: “O que eu vos posso garantir – muitos de nós já não estarão cá, mas estarão cá os nossos filhos e os nossos netos que poderão confirmar isso – é que haverá megas cidades no mar que vão mudar a geografia humana, a geopolítica e a geoestratégia. Isto, em menos de 50 anos, porque a tecnologia já nos permite fazer isso. E antes de irmos para o espaço, vamos de certeza ocupar 2/3 do planeta que estão vazios. E enquanto em terra somos um cantinho pequenino no sudoeste da Europa, com o mar que a comunidade internacional nos atribuiu, somos o centro do novo mundo oceanocêntrico.”

Sala foi pequena para ouvir o Almirante Gouveia e Melo

Gouveia e Melo ressalvou que “em democracia temos este “problema” de termos eleições de 4 em 4 anos” e, por isso, é difícil pensarmos a 50 ou 60 anos, mas defendeu que “há a necessidade de pensarmos a longo prazo, de sonharmos com isso e largarmos as amarras da Terra.”

O CEMA recordou que “no mar há muita riqueza” e deu um exemplo: “60% da energia dos datacenters é consumida em arrefecimento, mas podem estar imersos dentro de água e podem estar ligados por fibra, em estrela, a uma série de sítios importantes. Isso pode gerar um novo desenvolvimento económico. Há muita coisa que se vai desenvolver que nós hoje ainda não imaginamos. Temos de estar atentos, sonharmos e termos capacidade de realização. Não devemos pensar que os outros devem ir à frente e depois nós lucramos com as suas descobertas. Não, nós temos de ir à frente, na ponta da lança, para podermos também lucrarmos e posicionarmo-nos na escala de valores. Para um país pequeno como o nosso, é a única forma de sobrevivermos.”

Coube ao ex-presidente da Câmara Municipal José Ferreira desafiar o Almirante a revelar o estado do futuro navio polivalente prevista já há 30 anos pela Marinha.
Segundo o Chefe do Estado-Maior da Armada, “tudo indica que o navio vai para a frente, estamos a encontrar forma de o financiar, devendo ser financiado dentro do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR).

O Almirante revelou que “este é o primeiro navio que concebe, desde raiz, a operação de robotização. O navio é uma plataforma de operações robotizadas, sejam drones aéreos de superfície ou submersíveis, com capacidade para mapear uma área grande do oceano que hoje precisa de um navio de 6 mil toneladas. Esse navio da Marinha tem hoje de percorrer devagarinho essa superfície do oceano durante meses. No novo processo que nós imaginamos, teremos um navio que larga 10 ou 20 drones de superfície que mapeiam essa zona em 1/5 ou 1/6 do tempo, sem obrigar as pessoas a fazer fiadas para cima e para baixo.”

Além disso, “durante esse tempo, podemos ainda fazer outras missões com outros drones. A nova marinha será uma marinha mais robotizada precisamente para fazer mais, com menos gente. Mas para isso, precisamos de mais tecnologia e vamos fazê-lo com o tecido empresarial português.”

Relativamente ao domínio cada vez maior da China no Oceano Pacífico, o Almirante explicou que “no Mar da China, uma potência como a China fez um mapa com 9 traços, completamente fora das regras internacionais, e dizendo que o mar é nosso porque temos força para dizer que é nosso. O que fazem outros países como os americanos, ingleses ou franceses? Passeiam nesse mar como se o mar fosse internacional, afirmando que aquele mar não é de ninguém, não é um mar fechado.”

O Chefe do Estado-Maior da Armada alertou que “isto pode levar no futuro a rever a própria CNUDM, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar. No dia em que se fizer uma revisão desta convenção, países como o nosso que têm uma grande área atribuída no mar com um pequeno potencial para a desenvolver poderão estar em risco de perderem esse potencial. Como disse, o nosso potencial pode também ser uma ameaça e a ameaça muitas vezes não é dos nossos opositores declarados, é dos próprios países que estão dentro das nossas alianças, que também têm interesses a defender.”

Para terminar, coube ao moderador a última pergunta: Como fazer para reabilitar as democracias e a nossa, em partícula?

“Não tenho resposta para essa pergunta, gostava eu também de ter resposta para todas as perguntas”, respondeu o Almirante, mas “há um princípio que tem a ver com o conceito de participação. Nós habituamo-nos a que alguém está a tomar conta de nós e, portanto, nós não precisamos de participar. Isso nota-se no aumento gradual das pessoas que se abstêm e não vão votar, no associativismo nas comunidades. Achamos que a democracia existe, vai funcionando e, portanto, não precisamos de participar nela. Até ao dia em que descobrimos que já não temos democracia.”

“Acho que democracia vem também com a educação, temos de educar a nossa população a ser politicamente ativa, incentivar os jovens a participar na vida da comunidade e isso reforça a democracia. O que prejudica a democracia é a maioria silenciosa que não se manifesta e um dia passa de massa silenciosa a uma carneirada em que depois tem um pastor que toma conta desse rebanho. Nós é que tomamos conta de nós próprios”, defendeu.

“Mesmo dentro do sistema militar há sempre a queixa permanente e queixar não é participar. Temos de deixar de queixar tanto e participar mais. Hoje, há uma participação negativa através da comunicação social, redes sociais, que se tornaram o veículo de críticas permanentes, invenções e rumores e isso destrói a democracia. Hoje somos todos técnicos, aprendemos técnicas, mas esquecemos que que a vida em sociedade é o mais importante porque sem sociedade não existe nada”, acrescentou.
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Para Gouveia e Melo, “democracia somos todos nós a defender a própria democracia. Não esperem que apareça algum salvador. Não vai aparecer, e se aparecer, é muito mau. Normalmente, é o pastor.”

Mário Lopes

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