Edição: 281

Diretor: Mário Lopes

Data: 2024/4/20

Opinião

The Gift / Coral: um míssil no Portugal dos Pequeninos

José Alberto Vasco

Este ano da graça de 2022 ficou para mim musicalmente singularizado na área da música culta contemporânea desde que em março foi disponibilizado no mercado pela Deutsche Grammophon o esplêndido e determinante disco Drone Mass, honrando a oratória homónima do paradigmático compositor islandês Jóhann Jóhannsson (1969-2018). A multisciente composição foi encomendada ao autor pelo American Contemporary Music Ensemble, por ocasião do seu 15º aniversário, a esse emérito agrupamento se juntando nessa interpretação o categorizado coletivo vocal Theatre of Voices, sob direção do ínclito maestro Paul Hillier. Drone Mass é uma oratória para voz, quarteto de cordas e eletrónica, revelando-se claramente uma insigne elegia às virtualidades da voz e do canto, magistralmente inspirada nalguns dos míticos textos gnósticos da Biblioteca revelada ao mundo em 1945 após a sua descoberta na cidade egípcia de Nague Hamadi. A sua inspiradora audição envolveu-me num universo de paradisíaca tranquilidade e elevação imaterial, potenciada pela qualidade acima de qualquer prova com que esta sua sublime interpretação nos patenteia, com perfeito destaque para a sua delineação vocal, que desde logo me sugestionou para o enquadramento deste ano musical na área do canto. Muitos novos discos continuei este ano a ouvir, privilegiando essencialmente o instrumento musical mais antigo que se conhece, a voz, mas a mais recente e revitalizadora surpresa nesse campo chegou até mim muito recentemente, com a apresentação mundial do novel e pulsante disco da também islandesa Björk, o genial Fossora, palpitante música dessa deusa do som, da terra e da inquietude que imediatamente me despertou sentimentos de água, cristal, quartzo, filigrana, véu, veludo, génio e cetim, uma imensa e inesperada vontade de morrer à beira daquela praia e renascer numa daquelas canções, ferido de morte perante tamanha beleza e transformado em verso de eternidade. Confesso que a música da Björk sempre me fez sonhar acordado e que todas as suas canções sempre foram para mim autênticos cânticos de amor, quanto mais não fosse pela sua licenciosidade musical, pelo seu aprumo de edificação e pela paixão evidenciada.

   O disparo propriamente dito (por escrito)

Capa do disco Drone Mass

Foi embevecido nesse espírito de envolvência e curiosidade que me desloquei ao auditório do Cineteatro de Alcobaça para contactar pela primeira vez com a recente e novíssima produção musical dos The Gift em disco e em concerto. Embora tivesse acompanhado algumas das vicissitudes da labiríntica evolução do seu trabalho de produção, através de conversas que ia tendo de quando em quando com alguns dos The Gift, cumpri quase integralmente a minha intenção de partir para esta primeira audição integral em estado de total virgindade quanto ao seu conteúdo, entrando na sala totalmente despido nessa matéria. Recordo sempre o deslumbramento que senti quando os ouvi pela primeira vez, na sua maquete de candidatura ao Concurso de Música Moderna de Alcobaça, em 1994. Fui acompanhando a sua carreira num misto de admiração e amizade, até uma época em que por vontade própria me afastei. Reaproximei-me em 2011, quando a explosão de guitarras elétricas de Explode inapelavelmente me seduziu e confirmei que a banda tinha amadurecido e enveredado pelos caminhos de eleição que a conduziriam ao apogeu da participação criativa do gigante Brian Eno no nobilíssimo Altar, em 2017, elevando pela primeira vez a área pop/rock nacional a um nível anteriormente impensável. Graças à sua determinação, à sua qualidade e à sua eterna vontade de fazer sempre melhor, os The Gift tinham alcançado o patamar dos mais notáveis e apenas a tradicional inveja à portuguesa e a mesquinhez caraterística daquilo a que usualmente chamamos de Portugal dos Pequeninos evitou que os portugueses tivessem apreciado melhor esse belíssimo disco, apesar de ser indiscutível o sucesso da banda em concertos ao vivo.

The Gift (Foto: Sílvia Carvalho)

Achei necessária esta introdução, face ao que agora os The Gift nos disponibilizam no seu magnânimo e estimulante álbum Coral. E é admirável o que eles produzem, alardeando a coragem e o empenho criativo de sempre, num disco e num concerto em que assumem o risco de dar mais um enorme passo em frente, suplantando qualquer suposta barreira. Não se previa fácil superar a fase em que tiveram ao seu lado uma das maiores figuras da produção musical mundial, o que, obviamente ainda mais os encorajou a dar o salto em frente que o pulsante Coral patenteia. Felizmente imunes a uma ambiência de vistas e ouvidos curtos dominada por lóbis de edição e promoção em que o mais importante continua a ser ter amigos bem colocados em setores essenciais do mercado e respeitar a sua decrépita orgânica de funcionamento, em que mais importante que a criatividade artística é a deprimente funcionalidade comercial controlada pela manutenção desse status quo, os The Gift andaram novamente em frente, inovando e revolucionando a sua música e deixando inapelavelmente para trás a usual e opressiva dinâmica nacional de não fazer ondas. Curiosamente, os The Gift revolucionam-se voltando na sua essência ao espírito inicial da banda, em que eram a voz e a eletrónica as suas fundamentações criativas essenciais. Em Coral, são as vozes da cada vez mais convincente Sónia Tavares e de um credível coro superiormente integrado e dirigido que se aliam à luminar e ubíqua eletrónica de John Gonçalves, Miguel Ribeiro e Nuno Gonçalves, que também canta, gerando uma ambiência em que o bucólico, o orgânico e o eletrónico se entrelaçam, se potenciam e nos seduzem. O disco e o concerto manifestam pormenores fantásticos de construção e ligação, nomeadamente no modo subliminar em que são incluídas participações dos Pauliteiros de Miranda e de alguns elementos dos Gaiteiros de Lisboa, ostentado uma perfeição que em nada altera o sentido do disco, que se nos revela como uma espécie de álbum conceptual, embora propriamente não o seja. Sendo esta uma apreciação em sentido geral, não posso deixar de evidenciar o facto de um dos temas mais fortes e eficazes do disco ser uma versão, situação que pela primeira surge num disco dos The Gift. E a surpresa maior é o facto de a consolidarem sobre outra versão, a que Teresa Silva Carvalho gravou do Adagio em sol menor de Tomaso Albinoni, sobre um poema original de Ary dos Santos. Indesmentível é que o fazem muito bem e que a vulcânica Sónia Tavares atinge pontuação máxima nesta sua prestação. Coral simboliza notoriamente a chegada da música portuguesa a um novo porto e assume integralmente a responsabilidade de ser um novo marco na evolução dos The Gift e, consequentemente, na História da nossa música. Será rock? Será pop? Será neo-modernismo? Será o quê? A mim parece-me apenas que se trata de música de eleição, não precisando de qualquer rótulo ou etiqueta, mas apenas que a ouçamos e fruamos indefinidamente a sua riqueza, a sua pulsão e a sua elevada dimensão criativa. E podemos chorar como uma criança enquanto a ouvimos (aconteceu-me), pois além da qualidade técnica evidenciada é música de emoção, entrega e sedução. E nem necessitamos de a classificar com estrelas, pois esta é mesmo música de estrelas num universo de galáxias, tão infinito como a imensidão do universo. Ouça-se, que vale mesmo a pena!

    José Alberto Vasco

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