Opinião
50 Anos do 25 de Abril: o "Pé Descalço"
2024-01-22 00:15:29
Nascer na Alcobaça de meados da década de 1950 significou também para mim ter começado a estudar no decénio seguinte, em plena defluência salazarista. Iniciei o período da escola primária ainda no há muito extinto edifício escolar situado na zona onde presentemente se situa o parque de estacionamento junto ao mercado municipal, de onde nos transferiram pouco tempo depois para um novo edifício, aquele onde atualmente se localizam a Junta de Freguesia e o Juízo de Família e Menores de Alcobaça.
Era um miúdo da denominada classe média e, chegado à escola, uma das primeiras circunstâncias que identifiquei foi a de haver uma perspicaz diferenciação de classe, favorecendo os alunos de origem mais rica face aos menos favorecidos. Estes últimos eram claramente os mais prejudicados, nomeadamente em termos de violência diretamente exercida sobre si pelos professores.
Escapavam a essa agressividade conjuntural os meninos mesmo ricos e os da classe média, mas havia três ou quatro alunos mais pobres, que eram habitualmente uma espécie de bombos da festa de um impiedoso professor, que sempre recordarei como um autêntico déspota, que não hesitava em espancar impiedosa e impunemente aqueles indefesos garotos, numa época em que não havia classes mistas.
Um dos usualmente mais agredidos era um colega a que chamávamos “Rui Tonto”, a quem vi desferir sovas de o levar ao chão, implorando mercê a um agressor que não recuava. A evolução da vida levou a que esse desafortunado colega tivesse desaparecido da minha escola e da minha vida, mas nunca o esquecerei como genuíno mártir de um ensino repressivo, efetivado por compulsivos servidores. Recordo também um outro colega dessa época, provavelmente o mais pobre de todos nós, pois era o único que ia sempre completamente descalço para as aulas, tendo mesmo sido cognominado de “Pé Descalço”.
Finalizado o ensino primário, transferi-me para o ensino técnico e para a então Escola Técnica de Alcobaça, hoje Escola Secundária Dª Inês de Castro. Aí concluí o Curso de Formação de Serralheiro, tendo-me o percurso escolar encaminhado seguidamente para Leiria e para a frequência das chamadas Secções Preparatórias, cuja finalidade primordial era a admissão ao Instituto Industrial, proporcionando também a possibilidade de acesso ao Curso Geral dos Liceus ou à Escola de Regentes Agrícolas.
Mudar-me da pacata Alcobaça para a movimentada Leiria constituiu então uma determinante convulsão na minha vida, também consolidada nas disciplinas escolares que passei a frequentar, nomeadamente as de História e Português, essencialmente esta última, em que era crucial o estudo da literatura portuguesa. A minha adolescência foi também então enfatizada por uma apreensão mais acentuada acerca do universo político então vivido em Portugal e a minha vida nunca mais foi a mesma, nomeadamente pelo espectro da guerra colonial em que Portugal estava então envolvido e para a qual seríamos presumivelmente coagidos sem apelo nem agravo.
O universo escolar encorajava a sua índole capciosa e autocrática, evidente nos programas escolares e no relacionamento entre professores e alunos, condicionando negativamente as nossas vidas e a nossa vivência social. Essa ambiência e novas e antigas amizades pessoais conduziram-me às primeiras movimentações no universo político, numa época em que a nível juvenil as influências mais marcantes e organizadas nesse campo eram o MJT (Movimento dos Jovens Trabalhadores, que sabíamos ser conotado com o Partido Comunista Português) e o MRPP (liderado pelo mítico Arnaldo de Matos), embora a minha inspiração política emergente tivesse sido a partir de então a social-democracia.
A nível escolar, a frequência da disciplina de Português tornou-se fundamental na minha vida, a partir dessa época enriquecida pelo contacto com a produção literária dos mais reconhecidos escritores portugueses, atraindo-me então essencialmente Fernão Lopes, Almeida Garrett e Cesário Verde, assumindo a intrepidez de desconsiderar Bernardim Ribeiro, Camões e Eça de Queirós, entre outras estrelas da literatura portuguesa que o programa nos impunha, mas mantendo sempre Fernando Pessoa como uma espécie de reserva estratégica.
Uma decisiva perturbação que nos confrontava era a existência de uma perversa Comissão de Censura, que maleficamente proibia e esquartejava muito do que nesse período se pretendia publicar, pretendendo assim defender a opção ideológica vigente. Calhou-nos então em sorte uma distinta e corajosa professora, que subversivamente nos foi proporcionando o conhecimento da produção literária de eminentes escritores portugueses que o programa escolar era constrangido a ignorar e de que a repressão governamental nos afastava, pela proibição e pela omissão: Carlos de Oliveira, José Rodrigues Miguéis, Soeiro Pereira Gomes e Urbano Tavares Rodrigues foram alguns deles, mas o mais significativo de todos foi Nuno de Bragança, com o seu intrépido romance A Noite e o Riso, tesouro literário que revelou em mim um inabalável interesse pela escrita.
Comecei então a escrever um romance, intitulado A Greve & Outras Coisas, que relatava a vivência juvenil no depressivo universo então vivido em Portugal, povoado pela proibição de direitos fundamentais em termos de liberdade vivencial e política, evidenciando Portugal como um país em que tudo nos era proibido, incluindo a Coca-Cola, que ainda hoje recordo como uma das mais estúpidas proibições daquela época de rústico entorpecimento salazarista.
A minha vida continuou logicamente a politizar-se, assumindo uma militância aberta e não conotada, o que me direcionava à distribuição subversiva de comunicados de movimentos oposicionistas que à partida pouco tinham a ver uns com os outros, embora fosse comum o reconhecimento da necessidade de que o objectivo principal seria sempre derrotar o obtuso e indigno regime que nos governava.
Marcelo Caetano era então o rosto do regime que nos superintendia, afrontando diariamente a nossa liberdade, personificado a nível do ensino por Veiga Simão e pela sua anunciada e enaltecida Reforma, cujos objetivos nos pareciam pouco claros, revelando-se como mais uma ameaça às nossas vidas e ao nosso futuro.
Continuei a ser um estudante dedicado e envolvido, preenchendo uma razoável parte dos meus tempos livres com a atividade cultural possível, lendo o que conseguia, frequentando o cinema disponível que me interessava e ouvindo música, a partir dessa época entusiasmado com a liberdade e arrojo do free jazz, que descobrira através do seminal livro Revolução do Jazz, de autoria do saudoso Jorge Lima Barreto, complementando o que nele lia com a compra dos respetivos discos na lendária discoteca que então funcionava no piso superior da Electrolis, onde descobri também os King Crimson.
Continuava a escrever o meu romance, que narrava essencialmente a vivência de dois jovens amigos, um estudante e um trabalhador, que entre si partilhavam as dificuldades e esperanças daqueles tempos de difícil esperança, pois o futuro mais previsível era a chamada obrigatória para combater numa guerra que nada lhes dizia. Face à vigente ambiência de proibição, fui partilhando com os amigos mais próximos o que ia escrevendo no meu A Greve & Outras Coisas, o que me foi dando a conhecer como escritor, não deixando também de incentivar alguns dos nossos ímpetos mais revolucionários, que com maior ou menor relutância íamos manifestando no meio escolar.
Essa ambiência revolucionária ganharia um novo ímpeto quando os trabalhadores da Fábrica de Limas Tomé Feteira, em Vieira de Leiria, se arrojaram em fevereiro de 1974 numa corajosa e desafrontada greve, afrontando o regime político reacionário e fascista que proibia também essa liberdade democrática. Foi então que a Turma 35 da Escola Industrial e Comercial de Leiria se decidiu também a enveredar pela afronta declarada ao regime e ao seu decadente ensino, iniciando também uma greve, que, apesar de ser um ato proibido, não deixou de ter então alguns reflexos e notoriedade exterior.
O alvo direto da nossa assumida rebelião foi uma das nossas professoras, que justificava em plenas aulas a sua má fama e o terror que inspirava nos seus alunos, afirmando-se essa nossa greve como um exemplar ato de afrontamento do regime fascista que nos controlava e reprimia as justas e necessárias liberdades, já então permitidas em qualquer regime democrático. Essa greve efetivou-se também em fevereiro de 1974, tendo-se quase imediatamente seguido o usual inquérito, adivinhando-se a presumível expulsão do ensino de alguns dos seus intervenientes, um dos quais era eu mesmo.
Sensivelmente a meio do março seguinte registou-se uma inesperada substituição no responsável por essa investigação, facto que inicialmente nos deixou receosos, mas que pouco tempo depois nos descativou a margem de esperança que nos poderia facultar a salvação face à punição que eventualmente se antevia, dado que esse novo responsável pelo inquérito, um outro professor da nossa escola, se nos revelou como militante clandestino do PCP.
Os representantes dos alunos grevistas souberam isso logo na sua primeira sessão de inquérito, em que lhes foi assegurado que a colocação desse professor naquele cargo tinha a intenção de protelar ao máximo a investigação em curso, pois algo de fundamental se iria passar em Portugal dentro de muito pouco tempo, alterando definitivamente o nosso presente e o nosso futuro.
Teríamos essa resposta nessa data brilhante e inesquecível que foi o dia 25 de Abril de 1974 e, efetivamente, o nosso presente e o nosso futuro foram definitivamente alterados, graças ao esclarecido e heroico grupo de militares que idealizou e concretizou a revolução que permitiu a Portugal deixar para trás aqueles anos em que não foi mais que um país moribundo e afastado da realidade democrática e dos princípios elementares do Estado de Direito.
Uma das primeiras alterações a nível do ensino foi a de finalmente se poderem constituir associações de estudantes, facto de que uma das minhas primeiras consequências, tal como para alguns dos outros participantes na greve da Turma 35, foi a de termos sido eleitos para a direção da Associação de Estudantes da Escola Industrial e Comercial de Leiria, época em que vivi exemplares momentos de liberdade e responsabilidade democrática.
Outro desses inesquecíveis momentos foi o de dois desses responsáveis, eu e o meu eterno amigo Carlos Rebelo, termos sido convidados para escrever o discurso do aluno que representaria os estudantes de Leiria na histórica e inesquecível manifestação que no dia 1 de maio desse ano assinalaria na Praça Rodrigues Lobo as primeiras comemorações livres do Dia do Trabalhador no novo Portugal democrático, discurso que nesse dia foi lido pelo Carlos, na varanda do Ateneu de Leiria, perante uma praça repleta de povo e liberdade.
Um dos episódios mais curiosos de que me recordo nesses gloriosos dias foi a prisão do marido da inesquecível professora que nos libertara literatura proibida nas suas aulas, sob a acusação de ser agente da odiosa PIDE. Assumi a nova vivência democrática em total empenho e liberdade, embora a libertadora revolução tenha então presumivelmente liquidado a minha carreira literária, dado que o meu romance ficou automaticamente desatualizado, nunca tendo sido publicado.
Liquidada ficou também a partir daí a minha carreira futebolística, dado que estava acertado com um clube da região para na época seguinte me federar e ir jogar na então I Divisão Distrital. Deixei também então de estudar, tendo ido trabalhar para a empresa comercial que o meu pai entretanto fundara, tendo apenas reiniciado os meus estudos quase uma década depois, concluindo o ensino liceal e tendo depois iniciado o meu catastrófico percurso pelo Curso de Direito, liquidado numa fulminante prova oral de Direito Constitucional em que fui literalmente trucidado pelo Professor Gomes Canotilho.
Como todas as revoluções, o 25 de Abril tem sido um projeto coletivo de avanços e recuos, em que o fundamental continua a ser o facto de Portugal ser honrado por uma Constituição da República que nos permite viver em total liberdade democrática. Surpreendentemente, há alguns meses, cruzei-me numa rua de Alcobaça com um senhor que rapidamente reconheci como sendo o antigo colega da escola primária a que chamávamos “Pé Descalço”. Confesso que foi para mim um momento de enorme e cristalina felicidade, dado que ele ia acompanhado por uma senhora, que presumi ser a sua mulher, e por alguns meninos, que presumi serem seus filhos. Olhei para os pés de todos eles e confirmei, maravilhado, que todos eles iam devidamente calçados. Refleti com imediata e inexcedível felicidade que só por isso também valeu plenamente o 25 de Abril, a que aqui deixo mais este viva!
José Alberto Vasco
Escritor
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